O processo de consolidação das políticas públicas de Economia Solidária no Brasil foi interrompido nos últimos anos, começando por um retrocesso bastante importante ainda na gestão Temer – quando a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) foi rebaixada a SubSecretaria – e se consolidou na atual gestão.
A extinção do Ministério do Trabalho com a Lei n.º 13.844, de 18 de junho de 2019, e a transferência para o Ministério da Cidadania encerrou um ciclo político, social e econômico das políticas públicas de Economia Solidária (Ecosol) no país. O fim desse ciclo teve três aspectos fundamentais:
- Redução conceitual e da abrangência da Economia Solidária: No Ministério da Cidadania, a Diretoria da Economia Solidária está inserida na Secretaria Nacional de Inclusão Produtiva Urbana, o que reduz as políticas públicas de Ecosol ao público urbano e a associa ao conceito de inclusão produtiva. Perde, assim, seu caráter, previsto nas Conferências, como estratégia de desenvolvimento;
- Redução orçamentária drástica: Na transição da Senaes para SubSecretaria, já houve uma forte redução orçamentária, bem como no número de projetos fomentados. O edital de finanças solidárias e empresas recuperadas já não foram executados no governo anterior. No atual, os projetos Redes estão todos com atraso no repasse de suas parcelas, bem como no caso dos produtos já executados no projeto Cataforte 3;
- Redução da Participação e Controle Social: O Conselho Nacional de Economia Solidária (CNES) teve sua dinâmica afetada já no governo anterior, mas todas as decisões relativas à Ecosol passaram pelo CNES. No entanto, apesar da Lei n.º 13.844 do atual governo ter preservado o CNES, o mesmo não se reuniu nenhuma vez esse ano.
A tríade da descontinuidade das políticas públicas de Ecosol se consolida e é a partir desse cenário que devemos analisar como ficarão as políticas públicas no governo federal para os próximos anos.
Orçamento e sua determinação nas políticas públicas
O Orçamento Público é determinante para apontar as prioridades e as diretrizes para os investimentos públicos, bem como para sinalizar para a iniciativa privada e a sociedade civil os rumos do país.
O artigo 174 da Constituição Federal afirma: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de […] planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.
Dessa forma, ao analisar os guias de emendas e o envio do PPA (Plano Plurianual) 2020 – 2021 ao Congresso Nacional, é possível perceber a situação da Economia Solidária para os próximos anos.
O Ministério da Cidadania incluiu a economia solidária em duas Secretarias – a Secretaria Nacional de Inclusão Produtiva Urbana, onde está a Diretoria de Economia Solidária, e na Secretaria Nacional de Prevenção às Drogas.
Na Secretaria de Inclusão Produtiva Urbana, a Diretoria de Economia Solidária apareceu no PPA 2020 – 2021 com apenas 8 milhões de reais. Na prática, é uma afirmação que a Ecosol não está entre as prioridades da Secretaria. A título de comparação, o orçamento em 2016 foi de R$ 60 milhões, e em 2019 de R$ 27 milhões.
No Guia de Emendas 2020 enviado ao Congresso Nacional, o Departamento de Economia Solidária ficou com dois programas e duas ações voltados ao fomento dos empreendimentos econômicos solidários, que são:
- Programa: Promoção do trabalho decente e Economia Solidária
Ação: Fomento e fortalecimento da Economia Solidária
Público Alvo: Pessoas excluídas do mercado formal de trabalho, em situação de vulnerabilidade e risco social, organizadas coletivamente em Empreendimentos Econômicos Solidários (EES).
- Programa: Qualidade Ambiental
Ação: Fomento para a Organização e o Desenvolvimento de Empreendimentos Econômicos Solidários de Catadores Atuantes com Resíduos Sólidos
Público Alvo: Catadores e catadoras de material reciclável em situação de vulnerabilidade e risco social, em situação de pobreza extrema, organizados coletivamente em empreendimentos Econômicos Solidários (EES).
O primeiro programa tem como missão ser um fomento mais generalista da Economia Solidária, onde, em tese, caberiam iniciativas de fomento a área de comercialização, consumo, finanças solidárias e produção. No segundo, mais especifico, voltado ao público das cooperativas de catadores e catadoras de materiais recicláveis.
No entanto, ao analisarmos a definição de público, podemos ver uma característica em comum, nos dois programas. Ele associa a Economia Solidária às definições/conceituações do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
No Programa de Promoção do Trabalho Decente e Ecosol, a definição é: “Pessoas excluídas do mercado formal de trabalho, em situação de vulnerabilidade e risco social”. Essas definições são usadas no SUAS para definir aquela população que está alijada de seus direitos fundamentais, do trabalho e a dignidade humana. Obviamente, a Economia Solidária, por ser uma economia voltada à inclusão de todos os setores sociais, trabalha com a população alijada do mercado de trabalho e também em situação de vulnerabilidade e risco social, mas limitá-la a essas definições é atingir em cheio os sentidos mais fortes da Ecosol como uma estratégia de desenvolvimento. Importante salientar que o público rural, da agricultura familiar e da agroecologia não estão contemplados nos Programas da Diretoria de Ecosol. A pergunta que fica é: a Economia Solidária é um instrumento de promoção de portas de saídas do SUAS ou é uma estratégia de desenvolvimento?
No Programa Qualidade Ambiental, voltada às cooperativas de catadores e catadoras, a definição do público é: “em situação de vulnerabilidade e risco social, em situação de pobreza extrema”. Novamente, a definição de público está associada às definições/conceituações do SUAS. As cooperativas de catadores e catadoras surgiram obviamente da população em vulnerabilidade e risco social. No entanto, por meio das políticas públicas de fomento a essas cooperativas em diversos ministérios nas últimas décadas, as cooperativas se tornaram importantes atores da cadeia produtiva de reciclagem, o que foi consolidado no reconhecimento da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) n. 519205 e nas Leis de Saneamento Básico e Resíduos Sólidos.
Ao associar as políticas de fomento às cooperativas de catadores e catadoras à extrema pobreza e risco social, coloca-se um limitador importante, tanto na estruturação de arranjos produtivos para responder, por exemplo, à Logística Reversa prevista na Política Nacional de Resíduos Sólidos, como também no fomento de cooperativas de segundo grau voltadas a estratégias de comercialização e logística em rede. Isso sem falar que esse posicionamento impossibilita o fomento às cooperativas que já estão consolidadas, cujos sócios saíram da situação de vulnerabilidade e extrema pobreza.
Ao analisar o Guia de Emendas e os dois Programas previstos na Diretoria de Economia Solidária da Secretaria de Inclusão Produtiva Urbana – Ministério da Cidadania – e o envio do PPA 2020 – 2021, com uma diminuição de mais de três vezes o já pequeno orçamento de 2019, é possível afirmar a perda de centralidade da Economia Solidária na Secretaria, bem como a limitação da Ecosol ao setor urbano e o foco de suas iniciativas em conceitos e definições do SUAS, ao público em “vulnerabilidade e risco social em extrema pobreza”.
A Economia Solidária deixa de ser uma estratégia de promoção de desenvolvimento social, econômico e ambiental e se consolida como um dispositivo de focalização da política de assistência social, voltado a portas de saída.
Ecosol na Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas – SENAPRED
A experiência de cooperativismo e associativismo social oriundos inicialmente da Itália são instrumentos de promoção de autonomia e protagonismo de diversos segmentos sociais, com dificuldades na garantia do direito humano ao trabalho.
No Brasil, ganhou importante dimensão nas políticas públicas de saúde mental, álcool e outras drogas, sempre associada à estratégia da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em seu eixo de reabilitação psicossocial.
O Decreto n. 8.163, de 20 de dezembro de 2013 – que Institui o Programa Nacional de Apoio ao Associativismo e Cooperativismo Social (Pronacoop Social), define que: “I – cooperativas sociais – cooperativas cujo objetivo é promover a inserção social, laboral e econômica de pessoas em desvantagem, nos termos do art. 3º da Lei nº 9.867, de 10 de novembro de 1999 e II – empreendimentos econômicos solidários sociais – organizações de caráter associativo que realizam atividades econômicas, cujos participantes sejam pessoas em desvantagem, nos termos do art. 3º da Lei nº 9.867, de 1999, e exerçam democraticamente a gestão das atividades e a alocação dos resultados”.
No Guia de Emendas do Ministério da Cidadania a Economia Solidária isso aparece como parte da Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred). Ao analisar, vemos que esse programa está inserido num conjunto de outros programas e ações orçamentárias voltados ao fomento e estruturação física das comunidades terapêuticas e do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd).
O Projeto de Geração de Renda SER – Superação, Empreendedorismo e Reinserção Social tem como objetivo fomentar iniciativas de inclusão socioeconômica de pessoas em situação de vulnerabilidade social decorrente do uso abusivo de drogas, por meio da Economia Solidária, e traz em seu programa: rede de suporte social ao dependente químico – cuidados, prevenção e reinserção social, e na ação a prevenção de uso de drogas, cuidados e reinserção social de pessoas e famílias que têm problemas com álcool e outras drogas.
No detalhamento final do texto, aparece o seguinte aviso: “É importante que as cooperativas e empreendimentos solidários sejam mistos, evitando o estigma e a segregação dos usuários de drogas”.
No contexto que está colocado esse Programa no Guia de Emendas, inserido nessa Secretaria e em meio a um conjunto de programas e ações orçamentários voltados ao fortalecimento das comunidades terapêuticas e ao Proerd, produz em nós um alerta, pois pode ser utilizado como um instrumento de fomento às oficinas e estratégias de laborterapia das Comunidades Terapêuticas.
Outro alerta é a restrição dos públicos a serem atingidos, aos usuários de drogas, limitando o que previam a Lei n. 9867/1999 e o Decreto n. 8.163, de 20 de dezembro de 2013. Destaca-se a não citação da RAPS no conjunto do programa, mostrando que não está associado à promoção da reabilitação psicossocial prevista na Rede do Sistema Único de Saúde. Em relação ao aviso do Programa, de promover cooperativas mistas, a pergunta que fica é: como serão mistas se estão associados a apenas um público?
Como conclusão, o Projeto de Geração de Renda SER, previsto no Guia de Emendas da Senapred está mais para estratégia de ampliação dos orçamentos destinados às estratégias de inclusão social e laborterapia das comunidades terapêuticas do que, efetivamente, para o cumprimento das resoluções da Conferência Nacional de Cooperativismo Social e do Decreto n. 8.163, de 20 de dezembro de 2013, que criou o Pronacoop Social. Assim, o Projeto é mais um instrumento de focalização da política pública para o beneficiamento das comunidades terapêuticas, e não um instrumento de promoção de reabilitação psicossocial associado à RAPS.
Conclusão: As políticas públicas de Economia Solidária numa encruzilhada histórica
A Economia Solidária passa por retrocessos desde o governo anterior, mas apesar disso contava com o funcionamento do Conselho Nacional de Economia Solidária e com programas associados a seus princípios fundamentais. No momento atual, a Ecosol passa por um processo de total desconfiguração, e as políticas públicas voltadas a ela estão numa encruzilhada histórica.
O orçamento não deixa mentir: de R$ 27 milhões, caímos para só R$ 8 milhões no orçamento de 2020 (lembrando que esse foi o enviado ao Congresso Nacional, e que ainda pode ser objeto de cortes e sofrer os contingenciamentos de início de ano).
As limitações conceituais combinam duas dimensões: a de limitação de públicos e de estratégia, classificando a Ecosol apenas como de ocorrência urbana e limitada a porta de saída do SUAS.
A limitação ao público urbano é grave, pois o último mapeamento da Economia Solidária realizado pelo Ministério do Trabalho(1) apontou que os empreendimentos econômicos solidários estão localizados predominantemente em áreas rurais: 54,8% contra 34,8% que atuam em áreas urbanas. Cerca de 10,4% desses empreendimentos se identificaram com atuação simultânea tanto em áreas rurais quanto em urbanas.
A limitação conceitual atinge em cheio a história e os acúmulos construídos no Conselho Nacional de Economia Solidária, nas entidades e centrais cooperativas solidárias, nas Conferências Nacionais e nas Plenárias do Fórum Brasileiro, pois retira das políticas públicas de Ecosol seu potencial de disputa dos sentidos do trabalho, de dimensão de desenvolvimento social, econômico e ambiental, focalizando seu impacto nas estratégias de portas de saída do SUAS e em seu público em vulnerabilidade, risco social e extrema pobreza. Promove a transformação da Economia Solidária num pequeno remendo ao ciclo de retirada de direitos pelo qual passa o país, com a Emenda 95, a reforma trabalhista e previdenciária.
Nesse sentido, a aprovação do Projeto de Decreto Legislativo apresentado pela UNICOPAS na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados é estratégica, na medida em que destaca a necessidade de recriação do Conselho Nacional de Economia Solidária e de ele ser o espaço de formulação coletiva e de afirmação da história da experiência de autogestão dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras(2).
Notas:
- Relatório de Pesquisa IPEA: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7410/1/RP_Os%20Novos%20dados%20do%20mapeamento%20de%20economia%20solid%C3%A1ria%20no%20Brasil_2016.pdf
- Acompanhe na Comissão de Legislação Participativa: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2224203
Leonardo Pinho – Presidente da Central de Cooperativas Unisol Brasil e do Conselho Nacional de Direitos Humanos e ex-integrante do Conselho Nacional de Economia Solidária.